RS Notícias: A cicatriz que a água deixou: um ano e meio depois, enchentes ainda roubam o sono e a paz de milhares de gaúchos

 

 

Mais de um ano após a maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, em maio de 2024 — precedida por outras enchentes devastadoras em setembro de 2023 —, milhares de sobreviventes carregam cicatrizes invisíveis. Pesadelos recorrentes, ansiedade incontrolável, tremores ao ouvir chuva ou o barulho de um trator e o medo constante de “pisar na água ao levantar da cama” tornaram-se parte do cotidiano de quem perdeu tudo, muitas vezes mais de uma vez.“Acordo achando que a água está vindo atrás de nós”Carolina Trapp, 46 anos, comerciante de Eldorado do Sul, acorda em pânico quase todas as noites. Em seus sonhos, rema um barco pela rua alagada do bairro Cidade Verde, tentando salvar a mãe cadeirante e o filho autista. Na vida real, ela já viveu isso duas vezes. “Às vezes tenho medo de colocar o pé no chão e sentir água”, confessa.Em Estrela, Juraci Padilha dos Santos, 68 anos, sonha que foge subindo o morro com a água nos calcanhares. “Era tão real…”, conta. Ela perdeu vizinhos, amigos e o convívio diário da comunidade. “Perdemos coisas que não eram só materiais. Hoje ninguém mais se encontra. Uns foram embora, outros estão em outro município.”Margareth Augustini, 61 anos, de Roca Sales, nunca tinha tido ansiedade até ver seu criatório de galinhas e porcos soterrado. “Minha cabeça não descansa à noite. Fico ouvindo os gritos de socorro das pessoas que morreram. Penso: como a gente podia ter salvado? E se acontecer de novo?”O que diz a ciência: sintomas persistem em quem não recuperou as perdasPesquisa coordenada pela psiquiatra Simone Hauck (Ufrgs/HCPA) com mais de 6 mil respostas de 100 municípios mostrou que:

  • Sintomas de depressão, ansiedade e Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) afetaram grande parte da população nos primeiros meses;
  • Mulheres jovens e pessoas de baixa renda foram os grupos mais atingidos;
  • Um dos principais fatores para a piora ou manutenção dos sintomas foi não ter recuperado as perdas materiais;
  • Pessoas com maior vulnerabilidade socioeconomicamente apresentaram menor redução dos sintomas ao longo do tempo.

“Quando a pessoa não recompõe a vida material, os sintomas de saúde mental progridem pior”, resume o pesquisador Santiago Diefenthaeler (Ufrgs).Ecoansiedade e o medo do “vai acontecer de novo”O pesquisador Gibson Weydmann (INCT-Sani) explica que muitos gaúchos vivem hoje uma forma de ecoansiedade: o pavor constante de novos desastres climáticos. “Tem quem quer mudar o mundo, quem fica paralisado de medo e quem simplesmente tenta ignorar, porque acha que não tem mais jeito”, diz. Estudos preliminares em escolas de Porto Alegre e Canoas já detectam altos índices de ansiedade, depressão, TEPT, alcoolismo e até ideações suicidas entre crianças e adolescentes das áreas mais afetadas.Quando a ajuda chegou (e quando não chegou)A Secretaria Estadual da Saúde investiu milhões em equipes multidisciplinares de saúde mental nas regiões atingidas, mas a rede psicossocial continua defasada frente à demanda. Iniciativas voluntárias, como o projeto Vagalume, coordenado pela psicanalista Cristina Kern (que já atuou na Kiss e na pandemia), continuam atendendo gratuitamente sobreviventes e voluntários de resgate. “Muitas pessoas chegavam tomando remédios por conta própria, desorientadas. Encaminhamos para psiquiatras e continuamos o acompanhamento”, conta Cristina.A força do coletivo: bordados, abraços e grupos de WhatsAppEm meio à dor, surgiram formas de resistência comunitária:

  • No Vale do Taquari, mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) bordam arpilleras — técnica chilena usada na ditadura — registrando perdas, luto e reconstrução. “É o que ajuda a sobreviver”, diz Juraci.
  • Em Eldorado do Sul, Carolina Trapp criou um grupo de WhatsApp com vizinhos para cobrar soluções do poder público e, principalmente, se apoiar. “Quando um cai, a gente levanta o outro.”

Um trauma que não passa sozinhoPsicólogos e psiquiatras são unânimes: quem apresenta ansiedade, insônia, taquicardia, choro fácil ou medo intenso de chuva deve procurar ajuda — mesmo que ache que “não está tão mal”. “Psicoterapia não é só para quem está em crise grave. É o que ajuda a processar o que a enchente reativou ou criou de novo”, alerta Cristina Kern.Um ano e meio depois, a água baixou, mas para milhares de gaúchos o pesadelo ainda não acabou. A cicatriz que ficou não é só nas paredes das casas: está na mente, no coração e no medo constante de que a próxima chuva leve embora o que sobrou — inclusive a esperança.

Correio do Povo

Origem: RS Notícias: A cicatriz que a água deixou: um ano e meio depois, enchentes ainda roubam o sono e a paz de milhares de gaúchos

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