RS Notícias: GILMARPALOOZA: O DIREITO EM FÉRIAS REMUNERADAS – 03.07.25

 Por Alex Pipkin

 

Dizem que Lisboa é um destino de sonhos. Sol, pastéis, tram elétrico, e — com alguma sorte — um fórum jurídico onde se discute o Estado de Direito entre uma taça de vinho do Porto e um jantar à base de lagosta. Chamam isso de evento institucional. Mas o nome que melhor cabe é Gilmarpalooza. É uma criação tão brasileira quanto a feijoada, só que menos digestiva.

A cena é sempre parecida — ministros do STF, governadores, deputados, empresários com pendências judiciais, todos reunidos sob o teto nobre de uma universidade portuguesa para trocar elogios, cartões e, se possível, favores. O mote é a democracia. O subtexto é a promiscuidade. O cardápio é luxuoso. O povo? Fica com a conta moral.

A justificativa oficial é lírica! Trata-se de um fórum para debater os grandes temas do Direito contemporâneo. A verdade, como sempre, mora nos bastidores: os ministros do STF — aqueles que deveriam ser os guardiões silenciosos da Constituição — transformaram-se em palestrantes itinerantes de si mesmos. Passam mais tempo fora do país do que nos autos dos processos. São especialistas em falar sobre liberdade, pluralismo e Estado de Direito em lugares onde isso ainda faz algum sentido. Por aqui, entre nós, a toga virou instrumento de arbítrio. Um espetáculo travestido de jurisprudência.

Lisboa, nesse contexto, não é cidade — é cenário. Um palco onde a toga atua, o empresário financia e o cidadão assiste da plateia, atônito. Boa parte das passagens, diárias e mordomias é bancada por instituições privadas — inclusive empresários cujos interesses repousam delicadamente nas mãos dos mesmos que discursam sobre ética, Estado e equilíbrio institucional. Se isso não é o retrato perfeito de um conflito de interesses, então talvez devêssemos redesenhar o conceito — claro, na novilíngua orwelliana, onde tudo que é escândalo vira “institucionalização”, e todo arbítrio, “equilíbrio institucional”.

Fui executivo de multinacional durante vinte e cinco anos. Nas empresas sérias, há código de ética, há compliance, e há consequências. Conflito de interesses não se transforma em coquetel — transforma-se em crise. E, quando acontece, os holofotes se acendem, interna e externamente. Já no setor público brasileiro, a reação é outra — serve-se vinho, tiram-se fotos, e se escreve um discurso sobre virtudes republicanas.

Nos Estados Unidos, juízes da Suprema Corte são figuras rarefeitas. Falam pouco, viajam menos, e, quando o fazem, evitam zonas nebulosas. Há regras, limites e vigilância pública. Por lá, conflito de interesses é constrangimento. Por aqui, é protocolo. Nenhum justice americano ousaria posar sorridente ao lado de um empresário com ações em julgamento. Já no Gilmarpalooza, isso é quase cláusula contratual. O juiz não apenas julga, ele janta, brinda e dá palestra para o réu.

Eis então que surge Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, convidado para falar sobre infraestrutura. Seu discurso, técnico, sóbrio, até coerente com sua trajetória. Mas o ambiente o trai. O palco, viciado. A companhia, constrangedora. É como ver um engenheiro tentando discutir drenagem num bordel — por mais honesto que seja o argumento, ninguém está ali para isso. Tarcísio parecia deslocado — e estava mesmo.

Nelson Rodrigues dizia que, no Brasil, até o passado é incerto. E no Gilmarpalooza, até a ética é performance. O evento se tornou símbolo daquilo que há de mais corrosivo na elite institucional brasileira: o casamento entre poder e conveniência. A toga se senta à mesa com o réu, o ministro brinda com o financiador, o deputado posa com o investidor. E todos brindam numa festa onde a impunidade é convidada de honra.

Nunca se falou tanto em democracia por quem menos a pratica. Como se repetir a palavra fosse suficiente para encobrir o abuso do poder. O escândalo, aqui, não é o desvio, é sua naturalização. A promiscuidade foi estetizada. O conflito de interesses, institucionalizado.

Enquanto isso, o Brasil verdadeiro segue no saguão. Não é convidado para Lisboa. Não participa dos jantares. Não aparece na foto. Mas paga tudo isso, com impostos, inflação e a erosão diária da confiança na Justiça. O povo olha de longe, com aquela suspeita típica de quem já sabe como a peça termina: todos absolvidos, todos premiados, todos livres para a próxima rodada.

Se a toga é o símbolo da Justiça, no Brasil ela virou fantasia de gala. E em Lisboa, seu baile anual. O Gilmarpalooza não é um fórum. É uma ópera, uma dissonante, autofágica, tragicômica. Só não é inédita. Porque aqui, a tragédia sempre se repete. A diferença é que agora ela tem trilha sonora, vinhos finos e hashtag.

Se os autos falassem, gritariam por decoro. Mas aqui, até o silêncio é cúmplice. E nós, espectadores silenciosos dessa ópera tragicômica, continuaremos a aplaudir ou exigiremos que o palco seja limpo?

Pontocritico.com

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